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2 de fevereiro de 2022

A acumulação de benefícios previdenciários e a proporcionalidade estabelecida pela EC 103/19

Análise sobre a aplicação dos índices de proporcionalidade no valor dos benefícios a serem recebidos no caso de cumulação com demais prestações previdenciárias.

Apesar da Emenda Constitucional n. 103, de 2019, conhecida como Reforma da Previdência Social, ter entrado em vigor em 13 de novembro de 2019, alguns dos seus efeitos somente vem sendo percebidos a medida que os fatos veem ocorrendo.

Um deles é a aplicação dos índices de proporcionalidade no valor dos benefícios a serem recebidos no caso de cumulação com demais prestações previdenciárias.

Embora já existisse regulamentação sobre as possibilidades ou não de cumulação de benefícios previdenciários no âmbito do regime geral de previdência social (INSS), no artigo 124 da Lei n. 8.213/91, e nos regimes próprios de servidores públicos, o que pode ser exemplificado pela legislação dos servidores federais (artigo 225 da Lei n. 8.112/91), somente com a edição da Emenda Constitucional n. 103/2019 que a assunto foi tratado de forma conjunta, abrangendo os diversos regimes básicos de previdência existentes.

Segundo determina o artigo 24 da EC 103/2019:

    Art. 24. É vedada a acumulação de mais de uma pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro, no âmbito do mesmo regime de previdência social, ressalvadas as pensões do mesmo instituidor decorrentes do exercício de cargos acumuláveis na forma do art. 37 da Constituição Federal.

    § 1º Será admitida, nos termos do § 2º, a acumulação de:

    I – pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com pensão por morte concedida por outro regime de previdência social ou com pensões decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal;

    II – pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com aposentadoria concedida no âmbito do Regime Geral de Previdência Social ou de regime próprio de previdência social ou com proventos de inatividade decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal; ou

    III – pensões decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal com aposentadoria concedida no âmbito do Regime Geral de Previdência Social ou de regime próprio de previdência social.

    § 2º Nas hipóteses das acumulações previstas no § 1º, é assegurada a percepção do valor integral do benefício mais vantajoso e de uma parte de cada um dos demais benefícios, apurada cumulativamente de acordo com as seguintes faixas:

    I – 60% (sessenta por cento) do valor que exceder 1 (um) salário-mínimo, até o limite de 2 (dois) salários-mínimos;

    II – 40% (quarenta por cento) do valor que exceder 2 (dois) salários-mínimos, até o limite de 3 (três) salários-mínimos;

    III – 20% (vinte por cento) do valor que exceder 3 (três) salários-mínimos, até o limite de 4 (quatro) salários-mínimos; e

    IV – 10% (dez por cento) do valor que exceder 4 (quatro) salários-mínimos.

    § 3º A aplicação do disposto no § 2º poderá ser revista a qualquer tempo, a pedido do interessado, em razão de alteração de algum dos benefícios.

    § 4º As restrições previstas neste artigo não serão aplicadas se o direito aos benefícios houver sido adquirido antes da data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional.

    § 5º As regras sobre acumulação previstas neste artigo e na legislação vigente na data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional poderão ser alteradas na forma do § 6º do art. 40 e do § 15 do art. 201 da Constituição Federal.

Estas novas regras somente produzem efeitos para situações de óbitos ocorridos após a entrada em vigor da Emenda Constitucional (13/11/2019).

Pelas novas regras constitucionais, não há mais direito a receber benefícios cumulativos com a renda mensal pela integralidade. A exceção se apresenta quando os benefícios têm renda mensal no valor do salário-mínimo.

Assim, por exemplo, uma pessoa que recebe aposentadoria por tempo de contribuição do INSS no valor de R$ 3.000,00 e fique viúvo(a) de um servidor público que recebia duas aposentadorias, uma no valor de R$ 10.000,00 no regime próprio federal e outra nova valor de R$ 4.000,00 no regime geral (INSS). Essa pessoa tem direito a continuar recebendo sua aposentadoria e passar a receber as duas pensões, que serão calculadas na base de 60% do valor da aposentadoria. Assim, a pensão do regime de servidor federal seria apurada em R$ 6.000,00 e a pensão do INSS em R$ 2.400,00. Nestas condições, essa pessoa teria que optar pela mais vantajosa para receber na integralidade – que seria a pensão federal (R$ 6.000,00) e receberia os dois outros benefícios na proporcionalidade estabelecida pelo artigo 24 da EC 103/19.

Ocorre que alguns questionamentos estão sendo feitos:

1 – Poderia a nova regra da Emenda Constitucional atingir o valor de benefícios já mantidos anteriormente à sua vigência?

2 – Considerando que o servidor público pode cumular cargos nos termos da constituição federal, seria possível aplicar a proporcionalidade no valor dos benefícios?

Sobre o primeiro questionamento, não se observam muitas controvérsias, pois entende-se que a norma constitucional se aplicará a todos os casos que ocorrerem após a sua vigência (tempus regit actum). Com isso, quaisquer dos benefícios que forem implementados a partir da vigência da EC 103/19, gerando cumulação com outros já instituídos, terão a incidência da norma de proporcionalidade.

Já quanto ao segundo questionamento, existe posicionamento divergente, entendendo-se que somente se aplica a proporcionalidade em casos de regimes distintos, onde não se observa a prerrogativa constitucional de cumulação de cargos. O STJ, recentemente, decidiu que “a acumulação dos benefícios do mesmo instituidor se der no mesmo regime, as pensões são acumuláveis se decorrentes de cargos acumuláveis, hipótese em que o valor dos benefícios é integral. Envolvendo regimes diferentes, o pagamento é parcial, conforme escalonamento, havendo pagamento parcial do benefício menos oneroso, ou seja, aplica-se a proporção ao menos vantajoso“.

Veja o acórdão do Tribunal Regional Federal da 5a Região que foi avalizado por decisão do STJ:

    ADMINISTRATIVO. CUMULAÇÃO DE TRÊS PENSÕES. DUAS DE REGIMES PRÓPRIOS E UMA DO REGIME GERAL. CARGOS DO REGIME PRÓPRIO ACUMULÁVEIS NA ATIVIDADE. REGIMES DISTINTOS. POSSIBILIDADE.

    1. Trata-se de apelação interposta em face de sentença que ratificou a liminar deferida e concedeu a segurança, para determinar que as autoridades coatoras (Pró-reitora de Gestão de Pessoas e Diretora de Pessoal da Universidade
    Federal do Rio Grande do Norte) implementem o benefício de pensão por morte em favor da impetrante, no valor integral.

    2. Cinge-se a controvérsia em saber se a impetrante possui direito líquido e certo de perceber a pensão por morte decorrente do falecimento de seu esposo, Sr. José de Freitas Dutra, que era professor aposentado da UFRN, cumulativamente com outros dois benefícios de pensão por morte oriundos dos vínculos que o instituidor detinha como cirurgião dentista dos CORREIOS e das contribuições como autônomo junto ao RGPS.

    3. A Lei nº 8.112/90 estabelece vedação ao recebimento de mais de duas pensões, nos seguintes termos: “Art. 225. Ressalvado o direito de opção, é vedada a percepção cumulativa de pensão deixada por mais de um cônjuge ou
    companheiro ou companheira e de mais de 2 (duas) pensões”.

    4. No caso concreto, porém, embora se trate de cumulação de três pensões, há de se considerar que são benefícios distintos, vinculados a diferentes fontes pagadoras, o que se mostra perfeitamente possível.

    5. Com efeito, o instituidor do benefício exerceu os cargos de professor da UFRN e de cirurgião dentista dos CORREIOS, sem qualquer incompatibilidade entre ambos, sendo lícita, portanto, a cumulação das pensões por morte decorrentes desses vínculos, por se tratar de cargos acumuláveis na ativa.

    6. Além disso, tendo o mesmo instituidor contribuído como autônomo para o RGPS, inexiste irregularidade no recebimento da aposentadoria ou pensão correspondente juntamente com os dois outros benefícios originários de cargos públicos exercidos licitamente nos termos da Constituição Federal, por serem esses últimos vinculados a regime previdenciário diverso.

    7. Na realidade, a Constituição Federal não tinha qualquer regra sobre acumulação de pensões e demais benefícios, seja no mesmo regime ou não, o que passou a ser tratado pela Emenda Constitucional nº 103/2019, em seu
    artigo 24: “Art. 24. É vedada a acumulação de mais de uma pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro, no âmbito do mesmo regime de previdência social, ressalvadas as pensões do mesmo instituidor decorrentes do
    exercício de cargos acumuláveis na forma do art. 37 da Constituição Federal. § 1º Será admitida, nos termos do § 2º, a acumulação de: I – pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com
    pensão por morte concedida por outro regime de previdência social ou com pensões decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal; (…) § 2º Nas hipóteses das acumulações previstas no § 1º, é assegurada a percepção do valor integral do benefício mais vantajoso e de uma parte de cada um dos demais benefícios, apurada cumulativamente de acordo com as seguintes faixas: (…)”.

    8. Logo, se a acumulação dos benefícios do mesmo instituidor se der no mesmo regime, as pensões são acumuláveis se decorrentes de cargos acumuláveis, hipótese em que o valor dos benefícios é integral. Envolvendo regimes diferentes, o pagamento é parcial, conforme escalonamento, havendo pagamento parcial do benefício menos oneroso, ou seja, aplica-se a proporção ao menos vantajoso.

    9. Essa nova sistemática se aplica somente para os óbitos ocorridos após a vigência da EC 103/2019, como se afigura no caso.

    10. A própria Constituição, ao estabelecer que “Nas hipóteses das acumulações previstas no § 1º, é assegurada a percepção do valor integral do benefício mais vantajoso e de uma parte de cada um dos demais benefícios”,
    possibilitou a acumulação de mais de dois benefícios, observada a proporcionalidade. Com efeito, a lei não emprega palavras desnecessárias ou obscuras. Se fosse possível a acumulação com um único benefício, a lei teria
    expressamente assegurado a percepção do valor integral do benefício mais vantajoso e de uma parte de outro benefício e não de “cada um dos demais benefícios”.

    11. Assim, assegura-se o recebimento das três pensões, dada a a cumulabilidade entre elas.

    12. Como nos Correios (benefício vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), o instituidor exercia a função de Cirurgião-Dentista, e na UFRN exercia o magistério, tratando-se de cargos
    acumuláveis por previsão constitucional (artigo 37, XVI, b), é devido o pagamento de ambos os benefícios na integralidade, devendo incidir a proporcionalidade no benefício pago pelo INSS, menos vantajoso.

    13. Apelação improvida.

Essa interpretação firmada pelo Tribunal ainda não forma uma jurisprudência mas já sinaliza um possível posicionamento a ser adotado pelo tribunais superiores quanto à manutenção da integralidade do valor dos benefícios no caso de cargos cumulativos nos termos da constituição federal.

Texto produzido por Bruno Valente Ribeiro, professor de direito previdenciário e Procurador Federal (AGU).

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