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17 de março de 2022

Uma análise acerca da inconstitucionalidade da sistemática de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente (art. 26, § 2º, inciso III, EC 103/2019) e das decisões judiciais sobre o tema

Sob a ótica dos princípios constitucionais, especialmente o da irredutibilidade do valor dos benefícios (art. 194, parágrafo único, IV, da Constituição Federal), da igualdade, proporcionalidade e da razoabilidade, não é plausível que um benefício por incapacidade temporária tenha valor superior a um por incapacidade permanente.

Uma análise acerca da inconstitucionalidade da sistemática de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente (art. 26, §2º, inciso III, EC 103/2019) e das decisões judiciais sobre o tema

A Emenda Constitucional nº 103/2019 alterou significativamente a forma de cálculo de alguns benefícios previdenciários. Com relação à aposentadoria por incapacidade permanente (antiga aposentadoria por invalidez), em sua modalidade não acidentária, a EC nº 103/2019 estabeleceu em seu art. 26, §2º, III, que, até o advento de lei posterior, o cálculo deverá corresponder a 60% da média aritmética simples dos salários de contribuição, com acréscimo de 2% para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 anos de contribuição para os homens ou 15 anos de contribuição para as mulheres.

Na modalidade acidentária, o valor do benefício de aposentadoria por incapacidade permanente corresponderá a 100% da média aritmética (art. 26, §3º, II, EC nº 103/2019). Já o cálculo do benefício de auxílio por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença), por sua vez, não sofreu alteração pela EC nº 103/2019, correspondendo a 91% do salário de benefício, conforme previsto no art. 61 da Lei nº 8.213/1991.

A lei a ser aplicada ao caso concreto quanto ao cálculo do valor do benefício é aquela vigente no momento da transformação do auxílio por incapacidade temporária em aposentadoria por incapacidade permanente. Assim, após a Emenda Constitucional nº 103/2019, quando o auxílio por incapacidade temporária é transformado em aposentadoria por incapacidade permanente, há um considerável decréscimo no valor do benefício.

Qual a proteção social nesse caso?

Sob a ótica dos princípios constitucionais, especialmente o da irredutibilidade do valor dos benefícios (art. 194, parágrafo único, IV, da Constituição Federal), da igualdade, proporcionalidade e da razoabilidade, não é plausível que um benefício por incapacidade temporária tenha valor superior a um por incapacidade permanente.

Nesse sentido é o entendimento da 1ª Turma Recursal dos JEFs da Seção Judiciária de Santa Catarina, conforme decisão de 14/10/2021 abaixo colacionada:

      RECURSO INOMINADO.PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR INCAPACIDADE PERMANENTE. CÁLCULO DO BENEFÍCIO. ART. 26, § 2º, INC. III, DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 103/2019. AUSÊNCIA DE PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. TRATAMENTO ANTI-ISONÔMICO ENTRE SEGURADOS. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. […] Veja-se que há evidente contradição em um ordenamento que propicia maior proteção social aquele que se encontra incapacitado em menor grau em face daquele atingido por contingência social mais gravosa (ausência de coerência interna) […]”. 3. Caso constatada a incapacidade definitiva, sem relação com acidente de trabalho, após o advento da EC n. 103/2019, aquele que até então fruíra auxílio doença (incapacidade temporária) e conte com tempo de filiação inferior a 20 (vinte) anos, se homem, ou 15 (quinze) anos, no caso da mulher, terá direito a apenas 60% da média do salário de benefício. Diversamente, o segurado titular de auxílio-doença, continuará regido pelo art. 61 da Lei n. 8.213/91, e, assim, terá renda equivalente a 91% da média do salário de benefício. Não há qualquer lógica ou razoabilidade nessa situação. 4. Além de situações de absoluta incongruência quanto a tempo de contribuição e valor de benefícios que essa situação gera, a perplexidade já vem se verificando na realidade, em que os segurados buscam evitar a todo custo a concessão do benefício por incapacidade permanente, mantendo ativo o benefício transitório, porquanto mais vantajoso, inclusive com pedidos de reversão nesse sentido. 5. Incidência do art. 44 da Lei n. 8.213/91, exclusivamente para admitir a utilização do coeficiente correspondente a 100% do salário de benefício para a apuração da RMI do benefício de aposentadoria por invalidez/aposentadoria por incapacidade permanente, devendo ser observado, para tanto, em relação ao período básico de cálculo, o caput do art. 26 da EC n. 103/2019, diante da higidez constitucional deste último enunciado normativo (art. 26, caput, da EC n. 103/2109). 6. Recurso a que se nega provimento. (5010992- 98.2020.4.04.7205, PRIMEIRA TURMA RECURSAL DE SC, Relator NELSON GUSTAVO MESQUITA RIBEIRO ALVES, julgado em 14/10/2021) (grifei).

Em destaque ao princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios, a 4ª Turma Recursal dos JEFs da Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, por sua vez, firmou entendimento no sentido de que, na transformação do auxílio por incapacidade temporária em aposentadoria por incapacidade permanente, sob as novas regras da EC nº 103/2019, o valor do benefício, após a sua conversão, não pode ser reduzido:

      PREVIDENCIÁRIO. CONVERSÃO DE AUXÍLIO DOENÇA EM APOSENTADORIA POR INCAPACIDADE PERMANENTE APÓS A ENTRADA EM VIGOR DA EC103/2019.VALOR NOMINAL DO BENEFÍCIO NÃO PODE SER REDUZIDO SOB PENA DE AFRONTA AO PRINCIPIO DA IRREDUTIBILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. 1. Hipótese em que o segurado teve transformado o seu auxílio-doença em aposentadoria por incapacidade permanente após a entrada em vigor da EC 103/2019, em 13/11/2019.2. Embora a legislação aplicável ao benefício seja a do momento da constatação do caráter permanente da incapacidade, o valor nominal do amparo previdenciário por incapacidade, após a sua conversão de auxílio-doença em aposentadoria por incapacidade permanente, sob as novas regras trazidas pela EC 103/2019, não pode ser reduzido, sob pena de afronta ao princípio da irredutibilidade, previsto no artigo 194, parágrafo único, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, bem como ao princípio da proporcionalidade, ante o caráter definitivo da restrição laboral.3. Recurso parcialmente provido. (5015021-19.2019.4.04.7112, QUARTA TURMA RECURSAL DO RS, Relatora MARINA VASQUES DUARTE, julgado em 05/07/2021) (grifei).

Dessa forma, conforme destacado pelo voto condutor do acórdão com ementa acima, “considerando a solução de continuidade entre o amparo temporário, agora transformado em definitivo, ante o agravamento da incapacidade laborativa, parece evidente que o sistema previdenciário não pode diminuir o grau de proteção já alcançado”.

Em decisão recente, de 11/03/2022, também discutindo essa temática, a Turma Regional de Uniformização (TRU) do TRF4 conheceu e deu provimento ao Incidente Regional de Uniformização de Jurisprudência nº 5003241-81.2021.4.04.7122/RS, declarando a inconstitucionalidade do inciso III do §2º do art. 26 da EC nº 103/2019.

Em seu voto, o Juiz Federal Relator Daniel Machado da Rocha destacou o princípio da proibição de proteção deficiente que “assegura que o direito fundamental social prestacional não pode ser desprezado pelo Poder Público, quer mediante a omissão do dever de implementar as políticas públicas necessárias à satisfação desses direitos, quer mediante a adoção de política pública completamente inadequada ou insuficiente. Examinando os efeitos práticos do cálculo da aposentadoria por invalidez, depois da EC 103/2019, fica ainda mais gritante a deficiência na construção de uma adequada proteção social contra o flagelo da invalidez.

Diante disso, a Turma Regional de Uniformização do TRF da 4ª Região decidiu, por maioria, declarar a inconstitucionalidade do inciso III do §2º do art. 26 da EC nº 103/2019 e fixar a seguinte tese:

      “O valor da renda mensal inicial (RMI) da aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária continua sendo de 100% (cem por cento) da média aritmética simples dos salários de contribuição contidos no período básico de cálculo (PBC). Tratando-se de benefício com DIB posterior a EC 103/19, o período de apuração será de 100% do período contributivo desde a competência julho de 1994, ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência.”

Destaca-se que a inconstitucionalidade declarada pela TRU – 4ª Região foi realizada em sede de controle difuso-incidental, que se impõe aos juízes e Tribunais quando indispensável à prestação jurisdicional, em decorrência do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal), desde que preservados os limites constitucionais e legais circunscritos ao controle concentrado.

Portanto, apesar da decisão não possuir caráter vinculante, representa o primeiro passo quanto ao reconhecimento – pelos demais Tribunais Regionais Federais, TNU e STF – da proteção social efetiva aos incapacitados permanentemente para o trabalho, sem discriminação entre os coeficientes aplicáveis nas modalidades acidentária e não acidentária, bem como em comparação com a sistemática de cálculo do benefício de auxílio por incapacidade temporária.

Texto produzido por Fernanda Dornelas Carvalho. Advogada e pós-graduanda em Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) e em Direito Previdenciário Militar.

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